Recentemente têm chamado muito a atenção as manifestações
de algumas pessoas contra a Constituição Federal.
Estas manifestações estão expressas em redes sociais, em
artigos e colunas de jornais de grande circulação e enraizadas nas mentes de
muitas pessoas, inclusive de profissionais da área do Direito.
O que leva (imagino eu) estas
pessoas a esta conclusão, é uma associação das garantias previstas na Constituição Federal de 1988 com uma geração de pessoas
“mimadas”, que “só enxergam direitos e não deveres”, dentre uma série de outras
adjetivações.
Normalmente tal crítica vem acompanhada de um saudosismo
quase doentio, traçando um comparativo com tempos passados, de como as coisas
funcionavam, de uma obediência às regras e às hierarquias, findando com uma
afirmação de peito estufado de que as gerações sobreviveram à tudo isto e
qualificando como desnecessários uma série de questionamentos que hoje são
feitos.
É uma lógica de repetição pura e simples, se meu pai me
batia e me tornei um “cidadão de bem”, tenho que bater em meu filho para que
ele também aprende, em um juízo metafórico que bem ilustra o ponto a ser
tratado.
Não entrarei aqui na discussão sobre
ser certo ou errado algumas das manifestações que fizeram surgir estes
comentários, pois tentarei ir além, avaliando a profundidade destas afirmações
que culpam a Constituição pelos problemas que hoje possuímos.
Primeiramente, só tenho a agradecer que a geração que
viveu as décadas de 60 e 70 do século passado, não possuía apenas pessoas com
esta cultura, com a mentalidade do “sempre foi assim”, do “eu passei por isso e
não morri” e mais uma série de afirmações que nos impedem de progredir, de
romper barreiras e de crescer enquanto ser humano e sociedade.
Graças a uma parcela de pessoas daquela geração, os netos
das pessoas que lá pensavam na lógica do “é muita reclamação por nada”, tem a
liberdade de se expressar livremente nas redes sociais e até mesmo em jornais
de grande circulação.
Somos uma democracia jovem, esta geração que hoje está
chegando aos 30 anos é a primeira geração nascida e educada em berço
(sedizente) democrático, sendo evidente que muito temos que aprender a conviver
com os nossos direitos e liberdades.
No entanto, causa realmente muito espanto e, até,
tristeza, ver que esta própria geração já questiona seus direitos e, mais,
gerações passadas que sofreram com períodos ditatoriais ergam esta mesma
bandeira.
Há muito se diz que o povo tem
memória curta, mas não podemos chegar ao ponto de ignorar episódios sangrentos
de uma história de autoritarismo e de negação de direitos. Se não for por amor
à liberdade e respeito à Constituição, que seja ao
menos em respeito àqueles que pagaram suas liberdades e, até mesmo, vidas para
que pudéssemos ter a Constituição que hoje temos que a respeitemos.
As duas décadas de ditadura militar continuam a pesar
bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as mentalidades
coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais tendam a
identificar a defesa dos direitos do homem com tolerância à bandidagem
(WACQUANT, 2001, p. 10), bem como não ver com bons olhos reivindicações e
questionamentos sobre as coisas impostas pelo Estado.
O problema é a desordem social que isto causa, muitos vão
dizer. A estes devemos dizer que a desordem é inerente à democracia, pois
durante muitos anos se pagou o preço de não se ter liberdade em nome de uma
suposta “ordem social” e de um “bem maior”.
Numa democracia personalista que coloca o a pessoa humana
no vértice da hierarquia axiológica, serão a autonomia, a dignidade, a liberdade
da pessoa humana, com todos os direitos e prerrogativas que gravitam à sua
volta, a fornecer os critérios de solução das situações concretas (BETTIOL,
1974, p. 140).
É difícil digerir a ideia de que estejamos questionando
“liberdades demais”. Não consigo entender a lógica de se defender que sigam com
práticas autoritárias e com normas despidas de sentido, em nome de uma suposta
tradição e de uma disciplina. Estamos querendo formar cidadãos adestrados?
Jovens que não tenham a coragem de questionar, que se conformem com as regras e
ordens impostas por si só?
Vale esclarecer que não se está a fomentar a anarquia,
tampouco incentivar qualquer espécie de rebelião sem causa, mas apenas que não
tolhamos da juventude o sonho do mundo ideal e o direito de questionar e de
reinvindicar os seus direitos.
Devemos comemorar que hoje podemos nos colocar em pé, nós
e os nossos direitos, que por sermos humanos possuímos, independente de
qualquer outra coisa, frente aos desmandos do Estado e buscar sentido de
justiça em qualquer norma que nos seja imposta.
O questionamento e a livre expressão fazem parte dos
direitos que duramente foram conquistados e são armas imprescindíveis na perene
luta contra o abuso de poder.
Quando a sociedade questiona suas próprias liberdades,
abre uma janela perigosa por onde o poder estatal passa desconhecendo limites
e, como, nos ensina ZAFFARONI (1995, p. 81): “a mais elementar experiência
institucional demonstra que sempre que há poder sem controle opera-se o abuso
de poder.”
Não caiamos na lógica da tradição, da repetição dos atos
por si próprios, que possamos aprender com os nossos erros e não desencorajar,
tampouco ridicularizar, uma geração que pode usufruir de mais direitos do que
se teve no passado.
Temos muito que aprender enquanto democracia, mas
certamente, não será com o retrocesso da justificação da ordem que alçaremos
algo positivo.
A ordem apresenta um custo, que muitas vezes não é
sentido por aqueles que a defendem. É preferível uma desordem com liberdade, do
que viver em uma ordem imposta e segregadora.
Não esqueçamos do que já sentenciou Ruy Barbosa: “a pior democracia é preferível à
melhor das ditaduras”.
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